The Leftovers (2014–2017)

Bolívar Escobar
13 min readDec 7, 2018

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Grande parte da história d’Os Irmãos Karamazov, o último livro publicado por Fiódor Dostoiévski, é vista através dos olhos de Aliócha (diminutivo de Aleksiei), o caçula dos três (ou mais) filhos de Fiódor Karamazov, o patriarca que viria a morrer e causar toda a discórdia dos atos finais da história. Aliócha é apresentado como um aspirante ao ofício clerical, um noviço que segue os passos da devoção religiosa inspirado por Zósima, um stáriets — algo como um monge idoso e pobre.

Esse comportamento acaba se contrapondo, na narrativa, ao temperamento tempestuoso do irmão mais velho, Dimitri, e também posiciona Aliócha como um ser de coração puro e boas intenções, também em oposição ao segundo irmão, o misterioso debochado Ivan.

Em um determinado momento, Ivan e Aliócha protagonizam uma cena na qual o soturno irmão do meio conta a Aliócha uma anedota que elaborou certa vez, imaginando um universo no qual a segunda vinda de Cristo ocorreu na Espanha, na época da inquisição. O messias, que caminhava pela rua fazendo um ou outro milagre de rotina, teria se deparado com um interessante personagem que Ivan chama apenas de “O Grande Inquisidor”, um cardeal que imediatamente ordena que seus guardas arrastem Jesus para uma cela sob acusação de heresia.

Ivan narra o monólogo que o Grande Inquisidor despeja contra Cristo, mais tarde, na cela: o ancião, indignado com a súbita aparição do messias, o condena por colocar em risco o trabalho que a Igreja vinha fazendo até então. Segundo ele, na passagem bíblica na qual Jesus é tentado pelo diabo após 40 dias e 40 noites de jejum (Lucas 4.1–13), o Filho do Homem teria errado em não ceder à tentação — deveria ter transformado as pedras em pão para comer e, portanto, comprovar seus poderes divinos perante o pecador. Para o Grande Inquisidor, Deus prefere conferir ao ser humano o dom do livre-arbítrio, uma escolha problemática, que deixa as pessoas decidirem o que é certo ou errado, gerando uma enorme pressão emocional e, portanto, sofrimento. O bom trabalho da igreja, ao qual se refere o Cardeal, é sanar o problema do livre-arbítrio ao apontar um “caminho da verdade”:

“Porque não há, para o homem que fica livre, preocupação mais constante e mais ardente do que procurar um ser diante do qual se inclinar. (…) A Vós eu digo que o homem não é atormentado por nenhuma ansiedade maior do que a de encontrar logo algo ou alguém a quem ele possa rapidamente entregar esse dom da liberdade, com o qual ele é amaldiçoado desde o instante em que nasce.”

O Grande Inquisidor admite que a aparição de Cristo é um perigo para a Igreja, pois ela teria que rever o trabalho feito até então. Papas, padres e bispos teriam que se debruçar sobre os novos ensinamentos, buscando interpretações e estratégias para livrar novamente o homem comum do peso do livre-arbítrio conferido por Deus, e por isso Jesus teria que ser queimado na fogueira como um herege. Aliócha ouve a anedota do irmão e protesta, achando um absurdo que Ivan tenha essa visão sobre o homem e a religião. Ivan ri, e comenta que Jesus, terminado o solilóquio do Inquisidor, responde com o silêncio, beijando o Cardeal nos lábios. O ancião, estremecido pela atitude do messias, abre a porta da cela e o liberta para nunca mais voltar.

Aliócha passa por diversas passagens com tentações pelo livro: o stáriets que idolatra como um santo vem a falecer. É dito que o cadáver dos homens que levaram uma vida monástica não sofre os sintomas da putrefação, dada a pureza em seus espíritos. Entretanto, o velho monge Zósima começa a feder muito alguns minutos após a morte, expulsando todos das proximidades. Aliócha, em sua narrativa pessoal, precisa seguir firme em sua fé conforme os acontecimentos se desenrolam ao seu redor.

Ao meu ver, Dostoiévski ensaia, tanto no trecho do Grande Inquisidor como em outras passagens d’Os Irmãos Karamazov, acerca da situação trágica que confere ao ser humano a necessidade da crença. O homem busca sanar essa necessidade mais popularmente pela religião, embora ela esteja por trás de todas as suas decisões envolvendo esse dom do livre-arbítrio. O conceito de necessidade da crença pode ser resumido nessa busca pelo significado da vida e nas suas variadas manifestações: seja a devoção religiosa ou, em um contraponto grosseiro, por uma suposta confiança em mecanismos racionais como a ciência.

Observar a religião através dessa lente da necessidade da crença é algo que não apenas fazem os escritores russos: no quinto episódio da segunda temporada de Rick & Morty, a Terra é transportada para uma localização incerta no cosmos porque uma raça alienígena organiza shows de talentos periódicos. Os habitantes de cada planeta precisam escolher um representante para cantar uma música que será julgada por essa raça, mantendo o planeta inteiro ou explodindo-o se acharem que o som não foi bom o suficiente.

É claro que Rick é o único personagem que sabe de fato o que está acontecendo, enquanto os demais, alheios à verdadeira intenção das cabeças gigantes, passam a interpretar sua aparição como um sinal divino e adotam práticas religiosas, correlacionando causa & efeito erroneamente entre o que praticam, ritualisticamente, e o que as cabeças fazem em seguida, como “resposta” a esses rituais.

O desenho animado zomba da ignorância dos personagens que acreditam terem influência sobre o mundo por meio de práticas religiosas (“se eu rezar, as cabeças vão se acalmar” ou “se eu plantar batatas, as cabeças ficarão felizes”), mostrando que as cabeças gigantes nem ao menos notam a seita se formando como resposta à sua aparição, puramente pela necessidade da fé que surge perante o absurdo e o desconhecido.

Dostoiévski, um religioso russo do século XIX, aborda a necessidade da crença religiosa como um fenômeno humano de ordem rebelde, como uma resistência que se opõe às crescentes correntes seculares que vinham se formando naquela época. Rick & Morty, nesse episódio em específico, traz a necessidade dessa crença sob o guizo do espetáculo, em uma forma superficial de expor a ironia da condição humana perante o mistério maior da existência. Em The Leftovers, a necessidade da crença religiosa é a inevitável resposta à perda.

Em meados de 2012 eu e minha dupla do TCC decidimos que seria interessante produzir um objeto artístico que envolvesse o conceito de espiritualidade em uma instalação. Essa decisão nos levou a um primeiro obstáculo na construção desse conceito: o que é espiritualidade e por que isso é algo diferente do que muitos chamam de “religião”?

Segundo Hill et al. (2000), a ideia de espiritualidade é bastante recente. Ela surge como uma tendência de uma sociedade secularizada com indivíduos que ainda se sentem inclinados a manter elementos religiosos em suas vidas, mas sem introduzir os compromissos institucionais supostamente vinculados a esses elementos. Ou seja, pessoas terão sempre conflitos de ordem subjetiva, como o sentido da vida, a inevitabilidade da morte, a busca por uma verdade maior ou a transformação pessoal. Mas como elas podem sanar essas questões sem precisar recorrer à religião?

Para Hill e os demais autores, entende-se por espiritualidade o “conjunto de sentimentos, experiências e comportamentos que surgem a partir da busca pelo sagrado”. A diferença disso para a religião é a presença de lugares, práticas e objetos não-sagrados que amparam ou facilitam essa busca — templos, igrejas e as práticas ritualísticas que envolvem esses lugares. Ou seja, tanto religião quanto espiritualidade giram em torno daquilo que nós, seres humanos, entendemos como o sagrado.

Analisando alguns dos nossos comportamentos por essa óptica, é possível perceber esse fator sagrado em comum nas variadas coisas que praticamos como ritual: deixar de comer carne uma vez por ano pode parecer arbitrário, mas se várias pessoas ao redor do mundo fazem em uma mesma sexta-feira, a prática adquire um aspecto de comunhão e de devoção a uma entidade maior. Em The Leftovers, a Partida Repentina fez com que vários cultos começassem a surgir com práticas que elevaram o acontecimento ao status da sacralização. O exemplo de maior impacto é o culto do Remanescentes Culpados (Guilty Remnants), os antagonistas da série, que se caracterizavam pelas roupas brancas e o fumo compulsivo — comportamentos religiosos arbitrários aos olhos de quem não faz parte do culto, mas que aproximavam os adeptos da lembrança do momento sagrado.

A Partida Repentina foi um exercício que o escritor Tom Perrota propôs para os leitores em 2011, ao imaginar um elemento objetivo de impacto religioso afetando a vida do ser humano em um nível global. Ou seja, diferente de ideias como “Deus” ou o “Messias” ou qualquer outra coisa passível de interpretação subjetiva, a Partida foi um fato, um acontecimento sobre o qual não existe fuga e que atua como tema central no livro que serviu de inspiração para a primeira temporada da série criada por Damon Lindelof — que buscava, na época, uma espécie de redenção pelos fãs chateados com o fim de Lost.

Teria Perrota se inspirado nas pregações de Harold Camping? Na mesma época do lançamento do livro, o famoso radialista americano que, após anunciar uma série de cálculos e interpretações altamente duvidosas da bíblia, começou a investir pesado em campanhas televisivas, outdoors e propagandas de rádio, defendendo que o Arrebatamento se aproximava. O evento, ainda considerado como abertamente anunciado em algumas passagens bíblicas, estaria prestes a acontecer naquele ano. Segundo Camping, em 21 de Maio de 2011, cerca de 2 a 3% da população mundial seria levada aos céus para o lado do senhor Jesus Cristo. Como garantir uma vaga? Sendo fiel, rezando muito etc.

É de partir o coração, mas pregações desse tipo fazem vítimas: pessoas se rendem fácil à ideia de pertencerem a um seleto grupo de escolhidos para o encontro com o sagrado. Harold Fitzpatrick, por exemplo, gastou 140 mil dólares para publicar um livro cujo objetivo seria alertar a população sobre o Arrebatamento que aconteceria na data prevista por Camping. O curta documentário We Will Forget (2012) resume o drama em 14 minutos:

Consequências mais graves dessa combinação entre necessidade da crença aliada à compreensões errôneas entre causa e efeito podem chegar a níveis ainda mais assustadores. Em 1979, 39 membros do culto Heaven’s Gate cometeram suicídio coletivo porque acreditaram que a passagem do cometa Hale-Bopp, visível a olho-nu naquele ano, simbolizava a abertura de um portal que os levaria para outra dimensão se seus espíritos abandonassem seus corpos no momento certo.

Apesar do apelo religioso, o Arrebatamento não é uma ideia tão antiga. Ele tem suas origens calcadas no Dispensacionalismo, uma doutrina cristã que interpreta a Bíblia através do seguinte princípio: em diferentes períodos da humanidade, Deus atuou com certas diretrizes perante os seres humanos. Ou seja, conforme o período bíblico do qual estejamos falando, precisamos encarar Deus agindo de acordo com diferentes “dispensações” e, para cada dispensação, Deus teria concedido a um representante o dom de sua palavra: passando por Noé, Moisés, até chegar em Jesus Cristo e então… em Jesus Cristo de novo, na sua segunda vinda agendada para algum dia que ninguém sabe ao certo. Esse período que estamos vivendo entre as duas vindas de Jesus é interpretado como a sexta dispensação, ou “Período da Graça”, que antecede ria uma grande tribulação e, em seguida, a aparição de Cristo.

Há controvérsias sobre a origem desse sistema interpretativo da Bíblia, mas ele ganhou popularidade e se formalizou há pouco mais de 100 anos, quando o teólogo americano Cyrus Scofield publicou uma versão da Bíblia do Rei Jaime com anotações em passagens que poderiam ser interpretadas como dispensacionalistas, com base nos ensinamentos do “cabeça” por trás de toda essa Escola: o padre britânico John Nelson Darby.

A bíblia de Scofield foi um dos livros mais vendidos no século XX em nível global. A ideia do Arrebatamento ganhou tamanha popularidade que mesmo as igrejas de menor alcance ainda pregam hoje uma segunda vinda de Cristo de alguma forma, induzindo seus fiéis a estarem sempre preparados para deixarem esse plano físico quando a hora chegar.

A terceira temporada de The Leftovers abre com algumas cenas mostrando o dia a dia de alguns devotos da fé Millerista, que agregou cristãos norte-americanos no século XIX em uma vigília até o dia 22 de Outubro de 1844, prevista pelo fundador do movimento William Miller como a data agendada para a segunda vinda de Cristo. Como o dia passou e ninguém viu o barbudo dando as caras por aí, a data passou a ser interpretada por alguns fiéis decepcionados como “O Grande Desapontamento”, dividindo o movimento entre os que não queriam mais saber da ideia do Arrebatamento, e entre os que não perderam totalmente a fé na segunda vinda de cristo, apenas aceitaram que Miller talvez tenha errado os cálculos, dando origem ao que hoje conhecemos como Igreja Adventista do Sétimo Dia.

The Leftovers é um seriado que explora desdobramentos sobre o que significa “crer”. É uma serie que problematiza a religião ao trazer seus efeitos objetivamente ao mundo real. E o que isso mostra, através de seus personagens, é que o ser humano, na sua eterna imprevisibilidade, não espera Deus ou o Diabo se manifestarem como arquitetos do caos, mas acaba descontando a culpa no próprio ser humano.

O primeiro personagem a negar a natureza religiosa do “Arrebatamento” é Matt Jamison, o reverendo que vive uma espécie de releitura do livro de Jó durante as três temporadas. A esposa de Matt, Mary, sofreu um acidente causado pelo trânsito caótico do momento da Partida Repentina. Em estado vegetativo, Mary é carregada de um lado para outro por Matt, que passou a se dedicar a provar que o evento não teve nada a ver com a fé cristã, já que tanto pessoas boas como ruins desapareceram, o que deveria significar que a fé deve ser mantida e que a Partida não devia ser encarada como um sinal do fim dos tempos.

O exato oposto é interpretado pelos Remanescentes Culpados, que julgam que o mundo acabou no dia 14 de outubro e que nada mais importa além do próprio Evento. Por isso, todos deveriam estar ocupados em apenas “lembrar” do ocorrido e abandonar qualquer outro apego às suas vidas normais, como a família, o trabalho ou a própria saúde. Laurie, a ex-esposa do protagonista Kevin Harvey, aparece na primeira temporada como uma entusiasta do movimento, para aos poucos se desenvolver como uma personagem que aceita ter sido enganada, passando a antagonizar os Remanescentes Culpados e a tentar resgatar membros da seita através da terapia em grupo.

Nora Durst, a personagem mais emblemática da série, representa o fatalismo de alguém que não consegue escapar das consequências da Partida, não importa o que faça ou que rumos deseje dar para a própria vida. Por ter perdido seu marido e os dois filhos no evento, Nora passa a ser tratada como uma pessoa especial, adquirindo status na cidade de Appleton, atraindo interesse de estudiosos do tema, sendo convidada a dar palestras etc. A última temporada da série revela que Nora nunca superou de fato a perda da partida: ela recebe apostar todas as fichas em uma suposta máquina capaz de replicar as condições que causaram o fenômeno, transportando a pessoa para o lugar onde se encontram os desaparecidos.

Uma quarta postura em relação à Partida é representada por Kevin Garvey, o personagem central da história. Kevin começa como o chefe de polícia de Appleton, que, no fundo, deseja apenas que as pessoas parem de surtar e que a vida na cidade volte ao normal, como se o fenômeno nunca tivesse acontecido. Kevin vê sua vida desmoronar aos poucos, com o afastamento de seus familiares e os crescentes sintomas de uma sanidade que sucumbe à panela de pressão na qual Appleton se transforma com as ações dos Remanescentes Culpados.

A partir da segunda temporada, Kevin ganha o “poder” de ressuscitar. Ele morre algumas vezes na série, vai parar em mundos diferentes e retorna após cumprir tarefas dentro desses mundos. Isso simboliza um salto enorme em relação à primeira temporada, que, mantendo-se fiel ao livro, deixa apenas a Partida Repentina como o evento inexplicável, passível de interpretação e reinterpretação. Quando Kevin chega ao Hotel depois de morrer, a série assume um tom diferente: Kevin poderia estar alucinando em um coma induzido, poderia estar sonhando ou poderia de fato estar morto, em um espaço límbico entre o céu e o inferno. As três hipóteses são válidas, não porque seja necessário escolher uma delas para entender a série, mas porque o que importa é Kevin Garvey.

Existem uma série de “regras” nesse outro mundo visitado por Kevin, e a que mais me deixa encucado é que ele, de fato, só encontra pessoas que já morreram quando vai pra lá (exceto David Burton, mas esse é exceção). Isso com certeza é uma pegadinha por parte dos autores da série, que querem que essas viagens post-mortem sejam propositalmente ambíguas. É por isso que eu insisto em ver o último episódio como também localizado em outro mundo.

Nora é confrontada com a decisão de ir adiante e submeter-se ao processo do LADR, sendo transportada para onde os Desaparecidos foram, abandonado sua nova vida com Kevin. A cena mostra que Nora teve um momento de hesitação dentro da máquina, mas um corte seco nos deixa novamente no escuro, sem saber o que aconteceu. Os personagens reaparecem anos depois, envelhecidos, em mais uma série de cenas tão oníricas que é possível acreditar que elas se passam em outro mundo também — mesmo Laurie, que faz uma breve aparição por telefone, poderia também estar morta.

A cena do casamento, os noivos embriagados, aquela interação bizarra de Nora com a Cabra, depois dela ter arrombado a porta do próprio banheiro para sair: tudo isso permite que a audiência duvide da realidade daqueles momentos. Nora finaliza a série com seu relato sobre a experiência na dimensão paralela na qual 98% das pessoas desapareceram, enquanto uma porção ínfima da população sobreviveu. O relato é tão absurdo e, ao mesmo tempo, tão plausível, que Kevin não hesita em afirmar que acredita em tudo, dando um fim feliz ao seriado.

Mas o que é acreditar?

Žižek explica: “A crença sempre envolve algum tipo de absurdo: você não acredita em ‘fatos’. A crença é, por definição, existencialmente acionada. Um axioma prático é a crença nos direitos humanos: é um salto de fé no qual você precisa crer que todas as pessoas, apesar da raça, gênero, religião etc, possuem os mesmos direitos. Isso é contra-factual”. O cinismo na fala do filósofo é justamente o que justifica a crença: ela é sustentada e fortalecida pela contradição. E o ser humano, em sua eterna contradição, não vê outra saída, a não ser crer.

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Bolívar Escobar

Só vim dar uma olhada, já vou embora (textos sobre séries e filmes contém spoilers).