The Handmaid’s Tale s01 (2017)

Bolívar Escobar
11 min readSep 16, 2017

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Em setembro de 1996 o Talibã, grupo extremista islâmico que então mantinha o controle sobre o governo do Afeganistão, aprovou uma lei que bania mulheres de ocuparem qualquer cargo de qualquer profissão. A medida gerou alguns efeitos colaterais, como a diminuição repentina de profissionais do sexo feminino atuando na área da saúde. Como a sharia proíbe homens de tocarem em mulheres, muitas pacientes ficaram sem conseguir consultas (inclusive para exames pré-natais) e o número de doenças afetando essa porção da população do país disparou.

O Talibã surgiu como uma resposta à invasão comunista que derrubou a monarquia afegã nos anos 70. Na década de 90, o grupo rebelde conseguiu tomar o poder e instaurar o regime fundamentalista que viria a ser derrubado nos anos 2000 como uma retaliação aos ataques terroristas do 11 de setembro. As famosas imagens das burqas, o véu que tapa o corpo quase inteiramente, deixando apenas uma telinha para os olhos, são um registro dessa complicada época para as mulheres daquela região. Alegando que tais medidas buscavam proporcionar um ambiente “seguro” no qual o feminino pudesse novamente gozar de um status sagrado, o Talibã submeteu as mulheres do Afeganistão a medidas que iam desde o banimento do comércio de produtos cosméticos até o completo isolamento delas dentro das casas de seus maridos, proibidas de se comunicarem com outras pessoas ou de andarem sozinhas pela rua.

O livro The Handmaid’s Tale, da escritora canadense Margaret Atwood, explora a hipótese de um país como os Estados Unidos ser submetido a um regime totalitário nos mesmos moldes, imposto por um grupo extremista religioso chamado “Filhos de Jacó”, que usa escrituras bíblicas como prerrogativa para a imposição de novas leis e de um novo estilo de vida em um futuro não muito distante, no qual a infertilidade é o maior problema de uma humanidade fadada ao desaparecimento.

Os Filhos de Jacó parecem ter chegado ao poder através de uma revolução violenta que instaurou uma ditadura. Os princípios desse novo governo do país, então rebatizado de Gilead, foram sentidos inicialmente pelas mulheres, que tiveram seus direitos como poder trabalhar ou poder ter contas em banco anulados por novas leis do dia para a noite. Não muito depois, uma espécie de sistema de castas foi instaurado, definindo que mulheres ainda férteis deveriam ser as “Handmaids” dos comandantes da revolução, enquanto as inférteis deveriam servir como “Marthas”, ou seja, serviçais em um regime análogo à escravidão. No livro, mulheres de classes inferiores eram chamadas “Econowives” e cada uma dessas castas usa de indumentária própria, sendo o vermelho a cor reservada às Handmaids por simbolizar o sangue do sacrifício a esta tão nobre causa. O trecho bíblico usado para justificar o ofício das Handmaids encontra-se em Gênesis 30:1–3:

Vendo Raquel que não dava filhos a Jacó, teve ciúmes de sua irmã, e disse a Jacó: Dá-me filhos, senão morrerei. Então Jacó se irou contra Raquel, e disse: Acaso estou eu em lugar de Deus que ao teu ventre impediu de frutificar?

Respondeu Ela: Eis aqui Bila, minha serva; coabita com ela, para que me dê a luz e eu traga filhos ao meu colo, por meio dela.

Em um ensaio para o The New York Times, Margaret Atwood revela que uma regra que ela impôs a si mesma durante a criação do universo de Handmaid’s Tale foi basear-se apenas em fatos já ocorridos na história para as novas regras e os acontecimentos de Gilead. Pesadamente inspirada pelo contexto de uma Alemanha dividida na qual viveu durante os anos 80, a autora buscou referências em grupos de resistência da segunda Gerra Mundial para criar o Mayday, o grupo insurgente feminino que se mantém em segredo entre as Handmaids. Segundo a autora, em suas extensa pesquisa ela detectou o padrão: em regimes totalitários, as classes dominantes manipulam as regras para se manterem no poder e para conferirem a si mesmas os privilégios da nova sociedade imposta. Mesmo a lógica dos novos nomes das Handmaids, o “Of” precedendo o primeiro nome do Comandante em posse da aia, é derivada do costume que originou nomes como “Ericson” (literalmente “filho de Eric”, graças ao sufixo “son” no fim do nome).

Curiosamente, o livro foi lançado em 1985 — quase dez anos antes de ascensão do Talibã no governo do Afeganistão, que foi o exemplo que eu usei para fazer um paralelo do que eu entendi que estava acontecendo com as mulheres de Gilead na série. Embora o Talibã provavelmente não estivesse incluso na pesquisa feita por Atwood, me parece o exemplo perfeito para demonstrar o poder da ficção especulativa: É quase como uma confirmação de que a história se repete, caminha em círculos. Se o livro foi quase um presságio para o regime do Talibã no Afeganistão, que deixaria o país famoso como sendo o lugar mais perigoso para ser mulher no mundo, é necessário ponderar sobre as cenas e o ambiente retratado na adaptação da Hulu para o seriado.

Em um artigo de 2015 para a revista Midwest Studies in Philosophy, o professor Brian Keeley compara as ferramentas da ficção especulativa sobre as estratégias lógicas empregadas por filósofos que exploram o campo das sensações e da mente humana. Segundo o autor, entende-se por “ficção especulativa” como um guarda-chuva que abriga diferentes tipos de ficção, como a científica e outros subgêneros envolvendo fantasia e narrativas distópicas.

Para Keeley, formular hipóteses e propor cenários de investigação sobre fenômenos da natureza e do comportamento humano é uma parte crucial da atividade científica. Parece haver uma mescla entre o trabalho de um escritor de ficção e o de um cientista ou filósofo que se propõe a testar uma conjectura. Keeley usa como exemplo o conto A Terra dos Cegos, de H. G. Wells, escrito em 1904. Nesse conto, o personagem principal encontra uma lendária civilização perdida na América do Sul cuja população, afetada por um misteriosa doença ocorrida em tempos ancestrais, deixou toda a população permanentemente cega. Acreditando estar em vantagem sobre os nativos, o estrangeiro tenta dominar a tribo com o seu “dom” da visão, mas descobre que não apenas os habitantes da lendária cidade desenvolveram sentidos super aguçados para compensar a cegueira, como também acreditam que ser capaz de enxergar não passa de um delírio na mente do protagonista.

Em um notório artigo publicado em 1974, o filósofo estadunidense Thomas Nagel propõe a seguinte pergunta: “Como é ser um morcego?”. Embora o texto parta desse questionamento, Nagel não se preocupa em respondê-lo, apenas em explorar os mecanismos dos quais os seres humanos lançam mão quando confrontados com esse tipo de hipótese. O trabalho especulativo começa então a assumir uma forma parecida com a que Wells empregou para criar o mundo ficcional do conto da terra dos cegos. O desenrolar de uma hipótese que questiona os limites da realidade, da percepção e dos sentidos do ser humano é um trabalho em parte científico, mas também criativo.

Atwood faz o mesmo exercício ao especular como seria o tratamento das mulheres em uma sociedade doente e dominada pelo extremismo religioso. A partir dessa especulação, Atwood aborda temas como a corrupção religiosa, a hipocrisia dos altos-escalões do poder, as articulações e mecanismos de resistência de populações marginalizadas, o feminismo, a depressão e, ao meu ver, o principal ponto filosófico escancarado pela série: o direito de uma pessoa (principalmente mulheres) ao próprio corpo.

Por causa da poluição e de noas doenças, a maior parte da população em Gilead é estéril e isso fez com que a capacidade de gerar filhos passasse a ser vista como um milagre, ou como um dom divino. Médicos que outrora trabalhavam em clínicas de aborto foram executados e expostos em praças públicas e as crianças dos casais ainda férteis foram raptadas. Mulheres que recentemente tiveram filhos foram raptadas para servirem como incubadoras da nova geração de filhos dos Comandantes e outros membros da elite dessa nova sociedade. Para Atwood, o controle da natalidade e o incentivo da fertilidade é um tema recorrente na história, e inclusive com alguns episódios obscuros envolvendo rapto de recém-nascidos. As Handmaids tornaram-se, literalmente, um mecanismo do Estado para assegurar a longevidade da população. Mulheres privadas do direito sobre os próprios corpos e agora objetificadas como instrumentos de reprodução.

A autora propõe algumas formas de manutenção desse novo aspecto cultural de Gilead: as “Tias” são mulheres mais velhas recrutadas para educar e vigiar as Handmaids, docilizando-as e inculcando a suposta nobreza de substituírem as Esposas dos Comandantes no ofício materno. As particicutions, cerimônias de linchamento público protagonizadas pelas Handmaids, parecem cumprir um papel de “válvula de escape” para a pressão que surge como efeito colateral dessa nova vida das mulheres. Além disso, Handmaids não podem sair sozinhas de casa, sendo uma responsável por vigiar a outra em uma estratégia parecida com a adotada em gulags nos quais a informação de oficiais à paisana, sempre atentos a potenciais insurgentes, era plantada (se havia mesmo oficiais na espreita, jamais era sabido).

Discussões entre Handmaids sobre as mudanças dessa sociedade são frequentes: em um determinado momento, a situação atual de Gilead é comparada com um passado no qual mulheres não tinham segurança para andar na rua, o que agora era solucionado graças à santidade adquirida por aquelas ainda férteis. Essa falsa-compensação (falsa porque apenas mulheres associadas às elites gozam essa segurança) também é expressada pelo Comandante Fred quando ele anuncia que o propósito dos Filhos de Jacó é “fazer um mundo melhor”, e que é impossível que o mundo fique melhor para todas as pessoas. Esse mote utópico de melhorar o mundo é uma estratégia de convencimento que permeia praticamente todas as ideologias políticas: é possível afirmar que o Talibã queria tornar o Afeganistão um lugar melhor também, mesmo que isso custasse a liberdade das mulheres. A grande questão especulada por Atwood é o quanto essa premissa é válida para que o Estado comece a alienar as mulheres dos próprios corpos, separando suas vontades dos papéis aos quais são forçadas. Fica claro, quando June visita Moira em Jezebel, a famosa casa de prostituição, que não há escolha para as mulheres além das opções impostas pelos homens poderosos.

Tais homens, inclusive, são os primeiros a se desviar dos propósitos divinos que orientam a nova moral gileadiana. A maioria gosta de levar suas Handmaids para o Jezebel como uma demonstração de poder e de satisfação de desejos sexuais esdrúxulos — nada muito longe da realidade, se lembrarmos das recentes acusações de orgias no Vaticano, país-sede do alto-escalão religioso cristão. Esse desvio, conforme aponta Slavoj Zizek, não é um erro ou um imprevisto no sistema, mas sim outro mecanismo que precisa operar para que organizações sociais baseadas em poder e hierarquia continuem funcionando.

Em Gilead, mulheres perdem a autonomia e até mesmo o direito para acessarem seus próprios corpos. Discussões sobre o aborto, questões de gênero, sexualidade, pornografia e até mesmo se fazer uma tatuagem significa perder um emprego: a ideia da posse do próprio corpo é o que permeia esses assuntos. Até que ponto uma pessoa tem liberdade para modificar a si mesma, para vender o próprio corpo ou para se desfazer dele? O primeiro ponto que essa questão evoca é se, de fato, possuímos alguma outra coisa além do nosso corpo. Parece estranho pensar no corpo como a nossa única posse, como a única coisa que nos acompanha desde o nosso nascimento. O corpo humano passa a representar ideais políticos se é tratado de determinadas formas (por exemplo, uma mulher que não se depila é, em teoria, uma mulher livre das amarras patriarcais), ou representa um ideal de beleza se é tratado de outras, como também pode se tornar símbolo de resistência, de inspiração, de repulsa, de identificação. Willian Ewing (1996), ao constatar o poder das fotografias do Holocausto, propõe que toda foto retratando corpos humanos tem um poder político por representar aquilo que até então não estávamos conseguindo ver.

O corpo é o palco onde ocorrem as disputas biológicas, religiosas, de gênero e de identidade. Quem controla o corpo controla, portanto, o mais importante agente político. Em Gilead, o corpo feminino representa o poder máximo: o poder de dar a vida, e por isso é tão importante o Estado não apenas controlar esse poder, como direcioná-lo precisamente para o interesse da elite.

Esse controle reverbera em questões sociais que hoje se multiplicam em inúmeras problematizações que colocam sempre em foco o poder que a mulher tem sobre o próprio corpo. Nos recentes casos de masturbadores em ônibus, mulheres são vítimas porque seus corpos são objetificados para o prazer individual em um espaço público, exposto.

A objetificação do corpo acontece diariamente: você provavelmente não sabe o nome do carteiro que entrega suas correspondências, mas você sabe que é uma pessoa — objetificada, portanto, na imagem da carta que chega magicamente até a sua porta. A objetificação é recorrente e até necessária, já que é impossível conhecer profundamente, como seres humanos, todas as pessoas que passam pelas nossas vidas — desde o cobrador do ônibus até os nossos pais. A objetificação torna-se um problema quando analisado pela perspectiva de grupos que são recorrentemente objetificados para os mesmos propósitos, não importa o contexto. Mulheres, na nossa sociedade, sofrem de excessivas objetificações sexuais, seja conscientemente em campanhas de publicidade, até em aparentemente inocentes papéis em filmes e seriados.

As mulheres de Handmaid’s Tale reduzem-se ao papel sexual do corpo, em uma objetificação que as priva de manifestações políticas, ideológicas e até mesmo afetivas. Essa completa alienação traz sintomas de depressão, gera revoltas e martírios (como no caso da primeira Ofglen). Em um infeliz paralelo, desvios desse parâmetro unicamente sexual em Handmaid’s Tale são tratados como doenças — nas próprias palavras da autora, como “traições de gênero” por regras impostas pelo poder religioso vigente e, na nossa sociedade, mulheres revoltadas com condições abusivas são mal-interpretadas, sendo muitas vezes reduzidas a um objeto sexual insatisfeito ou deslocado de um propósito supostamente natural. A mesma lógica impera em populações guiadas religiosamente que enxergam na homossexualidade uma “transgressão” de um caminho natural e, portanto, um problema (o que também é sagazmente retratando na série). Percebam como a questão dos direitos sobre o próprio corpo perpassa esses assuntos mas é sempre abordado com menos ênfase. Na questão religiosa, em particular, é curioso como o corpo de uma pessoa parece magicamente estar fadado a um controle metafísico, distante de sua realidade carnal.

Quando questionada sobre se Handmaid’s Tale é uma “previsão do futuro”, Atwood nega: “é impossível prever o futuro”. São muitas variáveis, muitos pontos cegos e uma quantidade infinita de possibilidades e desfechos. Mas é possível projetar medos, anseios, características de experiências passadas e padrões de comportamento em visões de futuros aproximados. The Handmaid’s Tale traz pertinentes reflexões sobre o propósito de movimentos políticos e dos mecanismos empregados por eles: estratégias de cerceamento de liberdades, objetificações e alienações de determinadas parcelas da população em prol de um “mundo melhor”. O que a história de June demonstra é que muitos desses mecanismos são visíveis apenas aos olhos das populações às quais eles são impostos. Seus efeitos passam desapercebidos pelas porções não afetadas, sendo tratados muitas vezes com desdém, ignorância ou como efeitos colaterais indesejáveis de uma sociedade aparentemente próspera.

Existe uma diferença crucial entre o livro e a série. Ambos os relatos da protagonista terminam com um futuro incerto, no qual ela é levada em um camburão por ter cometido atos de insubordinação e subversão — no livro, ela não sabe se está sendo condenada ou resgatada. Entretanto, Atwood inclui um epílogo que se passa quase 150 anos depois da história. Nesse epílogo, registros de um extinto país chamado “Gilead” são estudados por acadêmicos que buscam recontar a história da época, apesar das queimas de arquivo realizadas pelo regime que governou o país.

Esse epílogo posiciona a história de The Handmaid’s Tale em um local cinzento: os costumes e a cultura do país são tratados como “singulares”, efeitos de uma política totalitária cujas ações tornaram-se compreensíveis com o passar do tempo, dada a delicada situação dos habitantes da época. A humanidade parece ter se recuperado do problema da fertilidade, fazendo com que o ofício das aias pareça ter ganhado relevância histórica (ou não, não se sabe). O recado me parece claro: compreender momentos históricos em sua totalidade é um desafio que deixa muitas pontas soltas, gera interpretações e nunca será cem porcento objetivo.

A adaptação de Handmaid’s Tale em um seriado surge em uma época propícia, repleta de incertezas e inseguranças políticas. A mensagem de Atwood me parece clara: é necessário prestar atenção nas formas como as instituições de poder interferem nas relações das pessoas com os próprios corpos. A ficção especulativa é um excelente recurso para testar a fundo hipóteses de dinâmicas sociais, empreendimentos políticos e configurações do comportamento humano: o que foi escrito e retratado em Handmaid’s Tale, por ser minuciosamente fundamentado em fatos históricos, deve servir como inspiração para buscar intervenções políticas que já estejam ocorrendo, por menores que sejam, que possam servir como um sinal para motivações maiores, subliminares.

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Bolívar Escobar

Só vim dar uma olhada, já vou embora (textos sobre séries e filmes contém spoilers).