E aqueles que riam foram tidos como loucos por aqueles que não conseguiam entender a piada.

Bolívar Escobar
8 min readJan 5, 2018

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Esse texto surgiu enquanto eu tentava encontrar uma resposta para a seguinte pergunta: o que é o humor politicamente incorreto?

No primeiro episódio de Nathan for You, lançado em meados de 2013, o recém formado (e com ótimas notas) consultor de negócios Nathan Fielder decide ajudar Tony, o proprietário de uma pizzaria na Califórnia, a conquistar mais clientes através das tele-entregas. Segundo Tony, mais de 80% do lucro da pizzaria depende desse recurso, e Nathan logo apresentou sua ideia: prometer a entrega em 8 minutos ou o cliente recebe uma pizza grátis.

Com o desconfiômetro disparando, o pizzaiolo imediatamente retruca o consultor: “em 8 minutos a pizza ainda nem saiu do forno”. Tendo previsto a reação do seu cliente, Nathan explica: “sim, todas as entregas atrasarão e todos os clientes vão ganhar uma pizza grátis. Mas nada será especificado sobre o tamanho dessa pizza grátis”. O consultor mostra, então, uma pizza de 5 centímetros de diâmetro, parecendo uma bolacha cream cracker coberta de queijo ralado e mini-rodelas de salame.

O plano é executado, cobrando uma dedicação exclusiva de Nathan, que supervisiona toda a produção dos flyers para divulgação, a preparação das mini-pizzas e chega até a coordenar o treinamento dos motoboys, voluntariando-se para ir junto fazer as primeiras entregas. A série, que mistura alguns hilariantes momentos de reality-show, mostra a reação das pessoas ao receberem a mini-pizza: algumas riem, outras não aceitam, e ainda há as que xingam e fazem ameaças a Nathan e ao coitado do motoboy. Após aqueles 21 minutos do primeiro episódio, eu já sabia o que ia acontecer em seguida: eu estaria recomendando Nathan for You para todo mundo que eu conheço.

O site do Comedy Central originalmente disponibilizava os episódios para serem assistidos online. Hoje, na quarta temporada, a série atingiu uma popularidade considerável: Nathan é volta e meia convidado para entrevistas em talk shows, angariou inúmeros seguidores nas redes sociais e, para nossa sorte, ainda mantém vivo seu canal pré-fama que, agora, com tudo isso em mente, poderia ser considerado um prognóstico do seu sucesso como comediante.

A premissa de Nathan for You manteve-se inalterada: para ajudar pequenos comerciantes, Nathan os visita e, após uma breve conversa, os convence que a sua ideia horrível é a que tem mais chances de funcionar e tornar seu estabelecimento único, diferenciado por oferecer um serviço inovador. Para ajudar os donos de um rancho, Nathan criou o primeiro passeio a cavalo para pessoas obesas (mesmo isso custando dois gigantescos balões de gás hélio, uma equipe de funcionários para acompanhar o cavalo afastando galhos e outros perigos que poderiam furar os balões pelo caminho, e um drone carregando um espantalho para afastar pássaros); para ajudar uma corretora de imóveis, Nathan cria uma campanha baseada no fato dela ser a única corretora com total garantia de seus apartamentos casas não serem mal-assombradas (ele paga um exorcista e um médium para visitarem os imóveis antes, para se certificar de fato que esses apartamentos estão livres de espíritos do mal); para ajudar uma empresa de mudanças e logística, Nathan convence voluntários locais que eles podem se exercitar carregando móveis e caixas e obter os mesmos resultados que uma academia de ginástica poderia oferecer (para isso, ele contrata um fisiculturista como garoto-propaganda desse novo método e um ghost-writer para publicar um livro sobre o que ele batizou de “The Movement”). Eu poderia ficar para sempre listando os momentos memoráveis desta que, para mim, é a melhor série de comédia em exibição atualmente.

Todas essas peraltices do Nathan, entretanto, sugerem um pequeno problema: algumas pessoas são realmente enganadas e manipuladas para que o comediante consiga os efeitos cômicos do show. Em um episódio da última temporada, o comediante tenta transformar detectores de fumaça em instrumentos musicais para conseguir exportá-los pagando menos imposto. Para isso, ele precisa montar uma banda e publicar músicas usando detectores de fumaça como instrumentos. Em uma recente entrevista, alguns músicos que participaram do episódio revelaram pormenores interessantes: ninguém sabe quando a câmera está ligada ou não, várias pessoas no set não fazem ideia se o que está sendo gravado é atuação do Nathan ou não, e alguns atores “sabem” mais sobre o roteiro do que outros, deixando gaps para o improviso e para o inusitado, que depois são explorados na edição e compõem os vinte minutos surreais que vão ao ar. Nathan for You esmaece as fronteiras entre comédia e reality show, criando momentos de puro cringe (o desconforto e a vergonha alheia) entrelaçados com cenas introspectivas nas quais Nathan se revela um personagem tímido, com sérias dificuldades de interação social e que precisa sempre se reafirmar como indivíduo adulto, seja através de exaltações a sua auto-confiança, sua aparência ou sua presumivelmente frustrada sexualidade.

Justamente por causa disso, Nathan for You não parece ser o tipo de seriado de comédia que facilmente conquista o públicos diversificados. Em uma experiência pessoal, todas as vezes que tentei mostrar alguns episódios para a Giovana, minha namorada, ela se mostrou muito mais incomodada do que de fato achando graça nas ideias do Nathan. Isso foi me deixando ainda mais intrigado conforme eu constatava que várias pessoas que entraram em contato com a série não conseguiram encontrar a mesma graça que eu, ou no máximo acharam divertidos alguns momentos pontuais, não enxergando essa suposta genialidade do Nathan que eu insistia em vender. De repente, percebi a situação desdobrando-se no que eu realmente estava fazendo: estava claro que eu precisava de algum argumento para convencer as pessoas de que o Nathan é engraçado.

No fundo, esse “buraco negro argumentativo” é o destino de qualquer um que se diga fã de alguma coisa: fãs de Crepúsculo tentarão sempre convencer as demais pessoas sobre os pontos positivos da saga, apesar do exército de críticos dos livros da Stephenie Meyer. Fãs da Anitta e do Pablo Vittar continuarão reforçando os recursos musicais e ideológicos dos seus artistas em busca de pessoas que concordem e também exaltem esses fatores. E fãs de comédia tentarão sempre fazer uso do que eu comecei a identificar como estratégias de convencimento para tentar esclarecer o porquê do comediante X ou da série Ç serem, de fato, engraçadas, por mais estranhas que pareçam à primeira vista.

Essas estratégias de convencimento referem-se muito mais ao emprego de recursos como manobras de retórica (“O filme A é do mesmo diretor do filme B, ele vai ser engraçado com certeza.”), apelo emocional (“Eu sou muito a Phoebe do Friends, ela me descreve demais.”) e demonstrações de superioridade (“ Para ser sincero, você precisa ter um QI muito alto para entender Rick e Morty…”) do que análises precisas ou críticas construtivas sobre o conteúdo do que está sendo defendido. Na comédia, em particular, algumas estratégias de convencimento são bem conhecidas. A que eu mais observo é tentar defender um comediante ou uma obra alegando que seu conteúdo é politicamente incorreto: ou seja, ela incomoda algumas pessoas que não estão preparadas ou suficientemente abertas para entender a piada ou a sátira por trás de algo que, na superfície, é tido como ofensivo (e talvez simplesmente vulgar).

Eu não diria que o Nathan é politicamente incorreto, já que para mim o cerne do seu show está no absurdo de suas ideias e em todo o seu esforço e investimentos para torná-las realidade. Entretanto, isso que acabei de escrever trata-se, também, de mera estratégia de convencimento: para quem não está acostumado com o humor absurdo, Nathan for You simplesmente não é engraçado. A estratégia de convencimento apela para quem já concorda com as práticas humorísticas muito mais do que para quem não conhece ou não é familiar com o show. Isso revela um ponto curioso do politicamente incorreto.

É difícil definir o que de fato é o politicamente incorreto, mas podemos ir “comendo pelas beiradas”: trata-se de algum discurso que, por seu teor político, vai contra alguma ideia vigente, se mostra antagônico ao que é considerado correto, seja por um ponto de vista moral ou ideológico. Aqui, é necessário reforçar a distinção entre conteúdo e discurso: o politicamente incorreto não centra-se tanto no que é falado. Uma piada pode parecer inofensiva para certos grupos, e extremamente incorreta para outros. O politicamente incorreto parece estar muito mais centrado no discurso, ou seja, muito mais em quem fala e no contexto dessa fala. Em um exemplo prático, uma piada sobre mulheres pode causar desconforto se parte de um homem, ainda mais se for um homem em alguma posição de poder, mas pode ser encarada como ironia ou como crítica se essa mesma piada é proferida por alguma mulher. Existem casos extremos nos quais conteúdos são amplamente aceitos como ofensivos, ou de composições que soam ofensivas independente do contexto, mas a regra geral me parece apontar para o fato de que é possível atingir pessoas de gostos extremamente diferentes sendo politicamente incorreto — o que, justamente, torna isso um convencimento plausível apenas para quem já é inclinado esteticamente para o gosto desejado.

Por isso, poderia-se traduzir argumentos como “essa obra é politicamente incorreta” para “você precisa acreditar que essa obra é engraçada”. O consumo da ficção baseia-se principalmente na nossa capacidade de suspensão da descrença, ou seja, de desprender-se do mundo real e permitir a imersão no conteúdo ficcional, a ponto de sermos convencidos a acreditar no sofrimento dos personagens, a compartilhar suas alegrias e a, inclusive, rir de suas piadas. Quando algum comediante se justifica como politicamente incorreto ele está, no fundo, pedindo para que você acredite, por um momento, que ele é engraçado e não apenas ofensivo.

Não achar algo engraçado significa, portanto, que esse algo não foi suficiente para suspender a descrença do espectador. Entram em cena as estratégias de convencimento: você precisa conhecer as referências; você precisa ter vivido algo parecido com aquilo; você precisa ter familiaridade com o absurdo; você precisa entender que aquilo é politicamente incorreto.

Não quero desqualificar o humor politicamente incorreto como inválido por ser uma estratégia de convencimento: existem vários exemplos ótimos desse tipo de humor que eu poderia citar. O que quero demonstrar é que, se existe uma situação na qual você precisa convencer alguém de que algo é engraçado, seria interessante, antes de mais nada, dar um passo para trás e se perguntar por quê esse convencimento é, afinal de contas, necessário.

Eu acreditava que Nathan for You era o tipo de comédia que dispensaria qualquer estratégia de convencimento. Era impossível que alguém não achasse essa série engraçada. Mas eu estava errado, e percebi esse erro quando me dei conta que recomendar Nathan for You significava ter que incluir no pacote várias estratégias de convencimento para preparar o terreno — e o erro não foi simplesmente ter usado de estratégias de convencimento. Talvez o erro foi não ter usado as estratégias certas.

É curioso observar como, na comédia, existem conteúdos que são recebidos com facilidade. Os recursos humorísticos empregados pelo Mr. Bean são muito mais acessíveis do que os trocadilhos e os running gags (foi mal, eu não sei traduzir isso) de Arrested Development. Eu poderia adotar algumas estratégias de convencimento e afirmar que Mr. Bean é engraçado porque ele não fala, e isso já derruba a barreira da linguagem. Ele é engraçado porque faz caretas, porque anda de um jeito esquisito, porque, porque, porque. Da mesma forma, poderia convencer que Arrested Development é engraçado por vários motivos, mas isso não muda o fato singular e trágico que originou a necessidade por todas essas estratégias em primeiro lugar: para alguns, é engraçado e, para outros, não.

O resultado dessa reflexão foi me fazer perceber que o politicamente incorreto serve muito mais como estratégia de convencimento do que como uma forma de legitimamente ajudar a entender o conteúdo de alguma obra cômica. Eu falho em perceber como afirmar que algo é “politicamente incorreto” traz argumentos para uma discussão muito mais do que constatar que se trata de um apelo para quem já concorda e acredita naquela incorreção política. Ser politicamente incorreto não justifica coisa alguma, não é garantia de que algo, por assim estar alinhado, torna-se imediatamente engraçado — inclusive a má notícia é que, muitas vezes, de fato não o é.

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Bolívar Escobar

Só vim dar uma olhada, já vou embora (textos sobre séries e filmes contém spoilers).