Bolívar Escobar
6 min readApr 20, 2020

Demorou 3 anos e meio para Marco Polo chegar até a capital do império de Kublai Khan, onde hoje fica a cidade chinesa de Pequim. De Veneza até lá foram mais de 10 mil kilômetros, incluindo a travessia do deserto de Gobi, uma visita rápida pelo reino da Georgia, um período de molho de mais ou menos um ano no Afeganistão, onde Marco Polo ficou se recuperando de uma doença, e diversas outras paradas no lendário tour pela rota da seda.

Para fazer o caminho inverso, da China até a Itália, o novo coronavírus levou mais ou menos três meses: foi em meados de novembro de 2019 que as autoridades chinesas afirmam ter detectado o primeiro foco da doença respiratória. Em 15 de fevereiro de 2020, a Itália já registrava 3 pacientes com os sintomas. Hoje, policiais italianos recebem ordens para prender pessoas que estão saindo de casa sem a autorização do governo, para controlar o fator social da epidemia.

O fator social da epidemia é o contágio de pessoa para pessoa. A velocidade do contágio é assombrosa, mas o mérito é todo do vírus: por não demonstrar sinais de infecção nos dias iniciais, o hospedeiro do novo coronavírus pode transitar livremente pelas ruas, interagir com outras pessoas e compartilhar fluídos e perdigotos corporais, acreditando estar saudável. Como a doença se alastrou em países do hemisfério norte, o clima frio do inverno também contribui para o drama: lugares fechados conservam o ar mais tempo no mesmo ambiente. Ar esse que, inclusive, fica mais seco no frio, resseca as narinas, causa espirros, enfim, facilita a vida reprodutiva de qualquer microorganismo que gosta do nosso nariz.

O vírus chegou rápido porque ele viajou de avião. De Pequim à Roma o trajeto dura mais ou menos 13 horas, se estivermos falando de um Boeing 747, capaz de fazer quase mil quilômetros por hora. Isso é cerca de dezesseis vezes mais rápido que um camelo (o meio de transporte usado pelo Marco Polo) correndo o máximo que conseguir. Mas o Marco Polo jamais teria noção desse comparativo porque ele viveu em uma época na qual voar acima das nuvens era privilégio apenas de pássaros ou dos Rocs (dos quais falarei mais adiante), não de primatas ou de vírus mortais. O avião transformou o mundo em uma aglomeração de seres humanos.

Aglomerações de seres humanos são vistas pelos especialistas da saúde como um fator de alto risco: o vírus se sente mais bem-acolhido ali pelo meio da galera, transita com mais tranquilidade entre pulmões e mucosas. O ideal é se manter mais ou menos um metro e meio de distância afastado das outras pessoas. Dizem que foi isso que aconteceu com o Marco Polo: os europeus da época ainda não tinham desenvolvido o hábito de escovar os dentes, e por isso os rumores eram de que o imperador pediu para o viajante cumprimentá-lo de longe, para aquele cheiro de boca-de-cu não fazê-lo sentir ânsia. O fedor e o cheiro ruim são desagradáveis ao olfato porque eles podem servir como um sinal da presença de bactérias e outros microorganismos infecciosos. Por isso a repulsa de Kublai Khan ao bafo de onça do seu visitante. “Eu não quero dentro de MIM o que tem dentro desse europeu”, é o que o cérebro dele transmitiu quando computou os dados olfativos enviados pelo nariz”.

Rumores é o que não faltam sobre a viagem de Polo: muitos acreditam que o viajante forjou a maioria dos fatos descritos em seu diário, e que até mesmo a visita ao império chinês pode ter sido invenção pura. As pistas que aquecem a mente dos conspiracionistas são os pequenos detalhes, como o hábito de comer com hashis (os palitinhos) ou o de tomar chá — tão marcantes dessa cultura — não terem sido mencionados. Uma conspiração é uma narrativa paralela. “Paralela” no sentido de não encontrar subterfúgio em fatos reais, apenas em suposições que vivem dentro da cabeça e tomam controle do corpo do conspiracionista, movendo os músculos da face para abrir e fechar a boca, formando palavras doidas. Nesse sentido, a conspiração é parecida com o coronavírus, embora este prefira os pulmões, e não o cérebro, para infectar.

Podemos pensar em várias conspirações sobre o coronavírus aqui: talvez ele tenha sido criado pelo governo chinês de propósito, para afetar a economia mundial e deixar o país na liderança competitiva. Um plano perfeito. Não perfeito o suficiente para passar desapercebido pelo eletrificadíssimo cérebro dos conspiracionistas, que já descobriram tudo e desmascararam os tataranetos de Kublai Khan.

O brasileiro, por natureza, é um aglomerado. No sentido de, sendo impossível a presença de apenas um ou dois, o indivíduo conhecido no mundo como “brasileiro” carrega consigo, no entorno, como uma maldição e uma bênção, vários outros: simbolicamente, em forma de raízes indígenas, africanas, européias, espirituais extra-planetárias e por aí vai; objetivamente, como os elementos que caracterizam mais salientemente nossa cultura: o aglomerado do carnaval, o aglomerado dos estádios de futebol, os cultos lotados das igrejas, o aglomerado das casas empilhadas em morros nas favelas.

O vírus, se pudéssemos ouvir o que fala, estaria sempre repetindo a mesma frase: “com licença, eu PRECISO me reproduzir. Eu quero muito me reproduzir. Eu vou achar um lugar pra me reproduzir aí dentro. Não se preocupa, eu não vou reparar na bagunça”. É claro que uma criatura que só sabe repetir isso vai enxergar no aglomerado um convite para a festa. E eis que o brasileiro se vê diante do seu nêmesis, dos seus doze trabalhos de Hércules condensados em um único ato de não trabalhar: o isolamento social.

Nesta grande operação militar que virou o mundo pós-corona, o isolamento social é uma tática cujo objetivo é esperar o vírus perguntar “Opa, posso me reproduzir aí dentro?” e responder com “Dentro onde?”. Táticas militares nem sempre se baseiam em bater de frente. Como o general romano Fabius Maximus bem nos ensinou, muitas vezes vale mais a pena esperar o inimigo exaurir suas energias do que gastar as nossas. A energia dos indianos durante as monções, época do ano na qual se veem obrigados a ficar em casa por causa das pesadas e incessantes chuvas, termina convertida em um aumento cada vez maior da população.

No que se converterá a energia aglomeradora do brasileiro durante o isolamento? Quantas conspirações são capazes de surgir aqui dentro enquanto não estamos lá fora?

Marco Polo teria escrito (e aqui, sejamos francos, ele não se ajuda muito na hora de passar confiança sobre sua história) sobre um grande pássaro que habitava as montanhas chinesas chamado Roc, tão grande que conseguia erguer elefantes para os céus e derrubá-los lá de cima, para então devorar suas carnes. Apesar dos exageros e réplicas de lendas locais, considera-se hoje que Marco Polo de fato esteve na China. Um pesquisador alemão chamado Hans Ulrich Vogel escreveu um livro coletando evidências que, segundo ele, comprovam de uma vez por todas a autenticidade da saga do explorador veneziano. Inclusive, Hans pede para que tenhamos em mente que visitas de viajantes europeus por lá eram bastantes comuns, e que talvez o diferencial de Marco Polo tenha sido um pouco mais de eloquência em seus relatos.

Pesquisadores geralmente acabam fazendo isso, eles desmistificam coisas e acabam quebrando a aura de mistério em torno dos fatos. Por isso que eles são tão úteis em tempos de pandemia. Se não fossem os pesquisadores, os europeus teriam continuado acreditando que a peste negra foi um castigo divino, e não a consequência de deixar ratos se aninhando e convivendo com as pessoas nos grandes centros urbanos que se formavam na época. Outras coisas sobre as quais os pesquisadores já avisaram: que a Terra não é plana, que governantes devem ser escolhidos pelas suas competências e não pelo seu partido, que o melhor jeito de controlar a pandemia do novo coronavírus é fazendo isolamento social e testes compulsórios em toda a população e que o discurso de qualquer argumento que reduza um assunto aos aspectos matemáticos do seu funcionamento assumirá um tom de crueldade. Essa última, o pesquisador responsável pela descoberta fui eu mesmo.

Bolívar Escobar

Só vim dar uma olhada, já vou embora (textos sobre séries e filmes contém spoilers).