Deitados nas redes das verdades

Bolívar Escobar
6 min readMay 8, 2021

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De vez em quando o astrônomo norte-americano Neil deGrasse Tyson aparece em suas redes sociais compartilhando alguma máxima filosófica que considera pertinente. De modo recorrente, ele comenta em seu Twitter que “a vantagem da ciência é que ela é verdadeira, quer você acredite ou não” [1], um aforismo de sua própria autoria, popular entre os círculos racionalistas e positivistas da internet [2]. Qualquer envolvido com estudos científicos, seja academicamente ou profissionalmente, enxerga nessa pretensa afirmação, contudo, uma dose de otimismo muito maior do que a de realismo que ela procura transmitir.

Bruno Latour, tendo como objeto a área dos estudos sobre mudanças climáticas, expõe que a ciência só consegue alcançar esse grau de “verdade” graças a uma extensa rede de atores que a sustenta, e, mais especificamente, quando essa rede sucede em abraçar também quem está na outra ponta, vulgo, o público leigo que não está diretamente ligado com a produção desses fatos científicos [3]. O desafio dessa rede é compreender a diversificada composição da nossa sociedade, cujos membros se espalham em áreas que estão em proximidade com os cientistas — as entidades que os financiam e os jornalistas que transmitem seus estudos (e também os aparatos tecnológicos que os ajudam a obter e analisar dados), como também o restante do público e os artefatos que intermediam essas relações (televisão, internet, revistas e jornais etc).

Simplificando, a ciência será vista como verdadeira somente enquanto trabalharmos ativamente para que ela se mantenha como tal. Após um ano sob a condição de pandemia vivida durante um governo marcado pela ideologia bolsonarista, é fácil constatar que essa missão, pelo menos aqui no Brasil, está capengando.

Em exemplos diários, grupos de apoiadores do atual governo se empenham em propagar informações sobre os artifícios que essa base mantém como ponto de partida para suas posturas anti-científicas. Em exemplos recentes dessa articulação, vídeos são compartilhados amplamente pelo Facebook e, principalmente, pelo Whatsapp, trazendo depoimentos emocionados de pessoas supostamente anônimas sobre os problemas do isolamento social, da suspensão das aulas presenciais ou do comércio. Em outras versões, as mesmas fontes trazem depoimentos de entidades internacionais, como uma suposta “World Doctors Alliance”, que pregam o uso de medicamentos sem eficácia comprovada (e, muitas vezes, prejudiciais), ou alegam absurdos e “verdades ocultas” sobre nosso mundo, sugerindo que os eventos políticos que aparecem na superfície são os respingos de uma guerra espiritual ou algo mais esotérico.

O efeito cômico desse tipo de crença é que, ao apelar para as verdades ocultas que governam o mundo, eles acabam na verdade simplificando o problema: quem dera fosse tão fácil (ou sequer possível) localizar as origens das atribulações da realidade.

Um exemplo que me chamou a atenção foi um depoimento do ex-executivo da Pfizer, Mike Yeadon, que circulou no fim de dezembro de 2020, no qual ele propunha que a pandemia estava no fim e que não haveria necessidade de vacinação. Em uma extensa investigação feita pela Reuters [4] (em março deste ano), a biografia de Yeadon é delineada como alguém que, entre declarações xenofóbicas e apelos conspiracionistas, decide desaparecer da vida pública em meio a declarações polêmicas sem deixar nada muito esclarecido sobre suas reais intenções.

Esses exemplos denunciam, emprestando palavras do próprio Latour, que existe uma rede de atores empenhados em propósitos anti-científicos: esses videos são legendados em português (por alguém), editados para ressaltar os trechos-chave (também por alguém, uma pessoa), encaminhados estrategicamente para grupos de dispersão e retro-alimentação (cheios dessas pessoas). O exemplo de Mike Yeaton é especialmente emblemático, pois trata-se de um conspirador valendo-se do seu status no meio científico para propagar desinformação potencialmente prejudicial para as estratégias de imunização a nível global.

Ambos os casos de fake-news citados foram desmentidos pela Lupa, a agência de checagem da Folha [5]. Uma busca no Google com palavras-chave de ambas as conspirações (“Mike Yeadon” e “World Doctors Alliance”) retorna esses resultados nas primeiras posições, graças ao investimento em SEO dos veículos jornalísticos, outro ingrediente crucial da rede de atores pró-ciência.

Sendo tão fácil encontrar os “mythbusters” da internet, algumas perguntas surgem: por que as conspirações continuam se espalhando? Por que o trabalho de desmentir fake news parece enxugar gelo? Qual é o verdadeiro objetivo de quem, primeiro de tudo, produz essas falácias?

O grande problema surge quando tentamos combater as informações falsas usando esses conteúdos das agências de checagem. As fontes da rede científica, que deveriam nutrir de prestígio e reconhecimento, são rapidamente relegadas como “manipuladoras”. Mandar um link das agências de checagem para alguém que está disparando desinformação é atestar que está trabalhando para uma mídia controladora e interessada em fins obscuros, “corruptos”. Nas mãos dessa articulada rede bolsonarista, a verdade da ciência é facilmente distorcida como mentira por causa do ethos dos veículos que as carregam. Qualquer contra-argumento para o absurdo é natimorto se vem hospedado no domínio da Folha, da Globo ou de qualquer outro grande veículo de comunicação nacional.

Entretanto, errado seria considerar a grande mídia como vítima dessa história. No início de fevereiro de 2021, essa mesma rede de veículos divulgou de maneira síncrona uma nota de um grupo chamado “Médicos Pela Vida”, em espaço comercial, advogando pelo tratamento precoce. Uma polêmica que foi comentada pela ombudsman da Folha [6]. Conforme demonstra o jornalista Victor Hugo Viegas, em seu blog pessoal, tal grupo é diretamente ligado à farmacêutica que produz a Ivermectina, medicamento incluso no pacote “anti-COVID” propagado pelos atores anti-científicos. Como poderíamos continuar confiando na Folha como ator comprometido com a rede científica se esse ator aceita veicular anúncios que ferem tal propósito?

Calcada em um modelo de negócio que subsiste por meio de anúncios e assessoria de imprensa para investidores e acionistas, a imprensa joga uma sinuca de bico contra a pandemia ideológica do bolsonarismo, encontra-se despida do véu que separa editorial de comercial e ameaça a própria credibilidade e subsistência desse modelo que a mantém funcionando. É preciso, mais do que nunca, que a mídia entenda seu propósito e descubra como se realinhar estrategicamente nesse cenário.

Se a relação da mídia com a rede científica se estremece, exemplos mais preocupantes estão vindo à tona. Não mais relegado ao ambiente desordenado das mensagens encaminhadas pelo Whatsapp, agora o próprio Conselho Federal de Medicina aparece sob suspeita após os depoimentos do ex-ministro da saúde Nelson Teich durante a CPI da pandemia. O oncologista teria afirmado que o presidente se informa por um grupo paralelo à equipe do Ministério da Saúde. Não sabemos quem são essas pessoas que estão inculcando ideias perigosas de imunidade de rebanho na mente dos líderes do país, mas o CFM tem feito reuniões com eles e defendido o uso de medicamentos sem eficácia comprovada e potencialmente danosos se usados sem prescrição.

É necessário relembrar da amarga premissa da ciência: ela será sempre um convite para o debate. Qualquer fato postulado como verdade pelo meio científico será acompanhado das condições e métodos no qual foi produzido. Respeitando essas condições, outros institutos, laboratórios, programas de pesquisa ou ricos aventureiros com o ferramental necessário podem replicá-lo ou tentar propor novos fatos. É possível até mesmo ver uma beleza nesse processo, mas ele requer uma adesão.

A amargura que mencionei está aí: acreditar na rede científica acaba por não ser distante da adesão que a fé conspiracionista promete para seus acólitos. Ambas as redes, por mais antagônicas que sejam, podem se valer dos mesmos artifícios de autoridade para pregarem um domínio sobre a verdade. A diferença que a ciência precisa buscar é o entendimento do papel social ao qual serve. Quando esse entendimento não ocorre, surge essa lacuna que acaba preenchida por essa contraparte paranoica e ilusória, porém mais acessível, mais palatável ao gosto de uma população incerta sobre seus rumos e sua liderança. É preciso que a ciência torne a ver na sua própria questionabilidade o trunfo que a diferencia dos séquitos aos quais busca desmentir.

Em resumo, a ciência precisa encontrar além da ideia da verdade algo que a ligue com as pessoas, porque redes concorrentes usam essa ideia se valendo dos mesmos artifícios de convencimento. O exemplo da cloroquina é gritante: os defensores não se valem de argumentos arcanos ou de origens imemoráveis, mas de estudos científicos publicados nos primeiros meses da pandemia, quando remédios eram testados e metodologias pouco robustas eram empregadas. Com o passar do tempo esses estudos foram desmentidos, mas os artigos defendendo o uso do medicamento ainda estão lá, acessíveis.

A CPI da Pandemia é o momento para denunciar o embate entre as duas redes de atores mencionadas nesse texto. À mídia e às instituições, cabe decidir com qual decidem colaborar. Se DeGrasse Tyson me permite corrigi-lo, eu diria que a vantagem da ciência é que ela é verdadeira, enquanto para ela continuarmos capazes de olhar dessa forma.

Notas

[1] Traduzido do original em https://twitter.com/neiltyson/status/1381197292728942595

[2] Um exemplo de abrangência internacional é o fórum Less Wrong: https://www.lesswrong.com/

[3] Essa dinâmica é exemplificada no livro “Pandoras Hope”, de 1999.

[4] Disponível em https://www.reuters.com/investigates/special-report/health-coronavirus-vaccines-skeptic/

[5] Respectivamente: https://piaui.folha.uol.com.br/lupa/2021/02/23/anuncio-medicos-pela-vida-covid-19/ e https://piaui.folha.uol.com.br/lupa/2020/12/01/verificamos-vacinas-controlar-pandemias/

[6] Disponível em https://www1.folha.uol.com.br/colunas/flavia-lima-ombudsman/2021/02/mais-uma-vez-a-cloroquina.shtml

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Bolívar Escobar

Só vim dar uma olhada, já vou embora (textos sobre séries e filmes contém spoilers).