Cyberpunk 2077 (2020)

Esse texto é um compilado de reflexões que fiz enquanto jogava esse joguinho.

Bolívar Escobar
10 min readJan 5, 2021
  1. Fazer uma lista de reflexões, em vez de tentar costurar meus pensamentos em uma prosa concisa, me parece o mais adequado dada a temática desse texto: um jogo que é uma lista interminável de tarefas e carros à venda;
  2. Não que não exista uma narrativa em Cyberpunk 2077. Ela está ali, ela evoca temas e subtextos que merecem atenção, mas lembraremos desse jogo não como uma história rica em detalhes e personagens carismáticos, mas sim como um produto problemático cujo lançamento foi marcado por polêmicas trabalhistas e bugs;
  3. E também porque essa narrativa do Cyberpunk 2077 não é o mais lapidado diamante, ela sofre de inconsistências e lacunas que se agravam ainda mais se considerarmos o gameplay e as features do jogo. Por exemplo, um aspecto ligeiramente criticado é o fato de você poder ajudar policiais resolvendo crimes e descendo a lenha em membros das gangues que estão pela rua. Mas se você tenta conversar com um policial, ou se aproximar de qualquer oficial da lei na calçada, seu personagem passará a ser perseguido e terá que se esconder. Por que, se você é o amigão do xerife?
  4. Ao meu ver, parece que essa inconsistência é um legado do conceito original do jogo. Em alguns textos que estão pipocando pela internet, supostamente extraídos de e-mails vazados e postagens anônimas em fóruns, alguns desenvolvedores da CDPR admitem que, em meio à névoa do pesado ambiente de trabalho que se formou, o resultado jogável que chegou até o público foi consequência de uma série de más-decisões executivas e de um retrabalho imenso em todo o código que vinha sendo construído desde 2012.
  5. Nesse retrabalho, algumas coisas fundamentais mudaram. O personagem central, V., agora apresentado como um mercenário, era imaginado como uma espécie de detetive, um Geralt da Rívia do futuro. Sendo um detetive, V. teria uma relação diferente com a cidade e a polícia, fazendo jus a um papel de mantenedor da ordem. Cyberpunk 2077 teria uma atmosfera muito mais noir e embasada em elementos de narrativas hard-boiled.
  6. O noir e o cyberpunk andam de mãos dadas, se pensarmos em gêneros cinematográficos. Blade Runner, um dos marcos desse tipo de literatura, tem como protagonista um detetive que, ao buscar uma resolução para seus conflitos envolvendo os replicantes, problematiza a violência dos eu modus-operandi e a relação que tem com a sua própria natureza humana e, eis aqui algo que eu gosto muito, a relação que tem com a cidade.
  7. A cidade como personagem é uma das características do new weird, subgênero da ficção especulativa que incorpora elementos do bizarro e do fantástico a narrativas ecléticas e anacrônicas. Night City é um personagem em Cyberpunk 2077? Ela apresenta contradições, cria situações de movimento em seus becos tanto quanto nas suas amplas avenidas, popula o jogo com gangsters e cenas de crime, mas por algum motivo alguns críticos não a enxergam como um elemento vivo — para eles, é apenas um cenário — lá vem aquela palavra — clichê.
  8. Night City é o “mapa” no qual o RPG de mesa Cyberpunk 2020 acontece, a obra na qual o jogo se baseia. Não conheço o RPG, confesso que na verdade nunca tinha ouvido falar, mas gosto dessa tendência que a CDPR vem apresentando, de pegar obras obscuras e adaptá-las para joguinhos AAA. Funcionou com a série Witcher, e atraiu a atenção de muitos fãs para o lançamento de 2020. O nome já devia dizer tudo: Night City é um cenário padrão genérico de cyberpunk.
  9. Mesmo com essa pista, as escolhas-clichê do jogo foram atacadas por esse artigo pretensioso do The Guardian, que expõe a falta de visão de um gênero que está ficando repetitivo por usar sempre os mesmos recursos: cidades decoradas com neon e cromo dos anos 80, corporatocracias violentas e, sei lá, hackers. Eu não acho que essa crítica seja válida, por dois motivos sobre os quais comento a seguir.
  10. A CDPR usa uma engine para rodar Cyberpunk 2077 chamada Red Engine 4, ou seja, a quarta geração das engines que estavam sendo empregadas para botar pra funcionar os jogos do Witcher. O que isso significa? Bem, a cada geração, a engine recebe complementos e agrega funções que permitem a um jogo renderizar mais coisas, suportar níveis de inteligência artificial mais avançados e por aí vai, o que traz possibilidades inovadoras aos desenvolvedores.
  11. Algumas dessas possibilidades são impressionantes. Se o seu computador é uma máquina de matar com uma placa de vídeo supimpa, você consegue viver Night City em todo o seu esplendor visual. Porém, mesmo em máquinas menos avançadas, é possível conferir alguns benefícios. Você pode chamar seu carro e rodar pela cidade inteira sem nenhuma pausa pra carregamento ou áreas de transição, por exemplo.
  12. Teve até gente que viu defeito nisso. Estacionar em alguma esquina e trombar com um personagem com um rosto renderizado pela metade foi encarado como um ponto negativo, e não como uma feature de engine de última geração. No design a gente estuda isso como um problema de UX, porque não tem nada de errado com o software, o problema está na experiência que cada indivíduo tem ao utilizá-lo.
  13. Eu imagino que Cyberpunk 2077 proponha a seguinte pergunta: como seria a experiência de um sistema de jogo rico e complexo, como o RPG Cyberpunk 2020, quando adaptado para um console de última geração?
  14. Ou seja, o jogo não está tão preocupado em reinventar clichês ou desbravar possibilidades e desdobramentos das temáticas retrofuturistas do RPG de Mike Pondsmith, como desejam os críticos, mas sim em supostamente potencializar esses clichês e temas ao máximo, inserindo o jogador em um ambiente… realista.
  15. A pretensão pelo realismo sempre será um tiro no pé, porque a realidade não é uma verdade talhada na pedra. A realidade é multifacetada, cheia de nuances, complexidades, imperfeições, e cada simulação precisa fazer uma lista das coisas que pretende recriar com fidelidade e uma lista de coisas que vai deixar para a imaginação do usuário. Essas listas são chamadas por teóricos como Ian Bogost de simulation gaps.
  16. As promessas de Cyberpunk 2077 estão sendo cobradas com veemência e isso é um sintoma preocupante na indústria de jogos hoje. Um simulador que vende seu sistema como ultra detalhado, capaz de permitir ao jogador escolhas como o tamanho da própria genitália, está também sinalizando que diferentes expectativas sobre a realidade poderão ser atendidas. Críticas como a de que Cyberpunk 2077 é transfóbico são o mínimo a se esperar, nesse sentido.
  17. Se não me engano passou pela timeline um maluco reclamando que não tinha nenhuma ciclovia em Cyberpunk 2077. Isso é perder o ponto de um jeito tão grotesco, é tipo ir numa padaria e reclamar que não tem frutos do mar no menu.
  18. O segundo motivo que mencionei no item [9] é que o gênero cyberpunk precisa sempre resgatar esses clichês, porque ele foi concebido em um cenário de guerra fria no qual os valores que estavam surgindo pediam, dialeticamente, por esse tipo de reflexão. Para mim, é inocente supor que o cyberpunk, como gênero, esteja sendo repetitivo, já que essas temáticas pós-capitalistas estão longe de serem esgotadas.
  19. Muito pelo contrário, bastou uma pandemia para que elas ressurgissem em variações que nem o doutor Estranho seria capaz de prever.
  20. Só pra fechar esse assunto, um detalhe que aponta para Cyberpunk 2077 não ser nem um pouco preocupado com clichês é incluir os arcanos maiores do tarô como indicadores de papéis e arquétipos narrativos. Mais clichê que isso, só se tivesse, sei lá, uma referência literal à jornada do herói do Joseph Campbell, hahaha.
  21. Depois das primeiras 20 horas de jogo, me dei conta que eu gosto muito desse tipo de RPG open-world, no qual você pode explorar o ambiente e ir fazendo as missões no seu ritmo, avançando a história conforme vai dando vontade. Minha diversão foi fazer um catálogo dos melhores bugs que encontrei pelo jogo:
  22. Em primeiro lugar, o bug que faz você morrer se você pula em um terreno muito acidentado. Eu morri descendo de uma cadeira, tentando subir numa pedra e subindo em um carro. Em segundo lugar, o bug que faz os NPCs ignorarem o ambiente e se chocarem com paredes, carros e os outros props do jogo. Era engraçado demais ver um personagem saindo pelo teto solar inexistente de um carro. Volta e meia apareciam itens voando também, às vezes alguém passava dirigindo e batendo no cinto de contenção da pista, essas coisas.
  23. Os piores bugs eram os que me forçavam a sair e entrar de novo no jogo. Ficar preso na visão do kiroshi era muito frustrante. Uma das decisões de design do jogo foi a de não interromper o gameplay com cutscenes. Ou seja, quando estava acontecendo uma diálogo importante, seu personagem continuava livre para andar pelo cenário ou acompanhar o rumo da conversa. Isso também resultava em bugs às vezes. O jogo perdia os triggers no meio da cutscene e eu precisava sair e entrar de novo para retomar o último checkpoint.
  24. Sinceramente, eu detestei isso. Eu amo cutscenes. Eu quero largar o controle e ficar assistindo filminho no meio do jogo sim. Eu aprendi a jogar video-game desse jeito, com os RPGs da Squaresoft com milhares de horas de cutscene intercaladas entre batalhas e viagens pelo mundo. Eu não sei porque essa decisão foi tão importante para a CDPR. Uma cutscene é muito mais imersiva e tem um peso narrativo muito maior do que deixar seu personagem subindo na mobília enquanto o outro fala coisas importantes sobre o próximo heist.
  25. A superficialidade narrativa foi o principal ponto dessa crítica do Dunkey. Os personagens são muito carismáticos, eu me apeguei muito à historia da Judy, ás gírias hispânicas do Jackie, ao sotaque carregado do Takemura. Mas a quantidade de bugs e a profusão de missões e tarefas simultâneas te afastam dessas imersões, não te deixam de fato sentir o que o jogo tenta transmitir como experiência estética. Sobram itens, tiroteios, carros, missões stealth, mas falta alguma coisa.
  26. Eu acho que é a partir daqui que podemos nos questionar sobre o que de fato compõe um jogo. O que é a experiência do “jogar” dentro de um sistema? Eu posso me fazer esse tipo de questão complexa e responder de um jeito leviano qualquer, porque eu sou um bobo do twitter escrevendo sobre algo que não é a minha área. Entretanto, fosse eu um executivo de uma das maiores desenvolvedoras de jogos do mundo, teria que pesar um pouco mais as consequências das minhas respostas.
  27. Escrevia o maluco anônimo que linkei no item [4] que o jogo foi retalhado em suas etapas de desenvolvimento, várias coisas ficaram de fora e algumas features receberam menos atenção do que o merecido. Por exemplo, supostamente existe um sistema de personalização de carros no jogo, ainda a ser implementado. Mais um legado que explica a quantidade absurda de carros inúteis à venda?
  28. Os engravatados culpados pelas coisas que ficam de fora agiram sob a pressão das deadlines. Cyberpunk sofreu alguns vários adiamentos na sua data de lançamento e o que temos hoje rodando por aí não é um jogo completo, evidentemente. É um MVP.
  29. Pense no Uber, o aplicativo para pedir carona que na verdade é fachada para uma operação global de lavagem de dinheiro. Quando o Uber foi lançado, ele não tinha a opção de colocar paradas antes do destino final da corrida. Ele também não tinha a opção de rachar o valor total entre mais pessoas. Essas foram funções lançadas posteriormente, agregadas ao serviço original para aumentar os benefícios.
  30. Cyberpunk 2077 deve ter sido pensado com um escopo muito maior do que chegou ao lançamento. Rumores sobre a participação de Lady Gaga no elenco, um sistema de metrô subterrâneo, multiplayer online, nada disso foi visto ainda. Esses aspectos foram cortados para favorecer o que foi identificado como núcleo ou tema principal do jogo: a história que gira em torno de Johnny Silverhand, o personagem de Keanu Reeves.
  31. A atuação de Reeves é sofrível, como todos esperavam que seria. Mas engraçada, divertida — o personagem dele é icônico, uma espécie de aspiração para V., que precisa decidir se, no fim, quer encontrar a si mesmo ou se tornar Silverhand em espírito. Uma saga filosófica, que engloba questões de vida após a morte, humanidade e piadas com pênis. O senso de humor, assim como em Witcher III, é uma constante. Johnny aparece nas piores horas com comentários sarcásticos sobre as escolhas do protagonista, podendo ou não levar invertidas, dependendo em qual opção de resposta você aperta “F”.
  32. Se contarmos todas as sidequests, todos os shards, diálogos e escolhas possíveis em Cyberpunk 2077, veremos que o jogo se debruça sobre vários temas e questionamentos profundos. No fim, você pode escolher entre fazer um upload da sua mente na forma de um engram, uma inscrição da sua psique na forma de um programa de computador, e ficar hospedado nos servidores da Arasaka pela eternidade. San Junipero, em Black Mirror, aborda essa escolha, e inclusive toca Heaven is a Place on Earth como música-tema desse episódio. Mas isso é estar vivo?
  33. Cyberpunk 2077 faz tantas perguntas. Para quem gosta desse tipo de confronto intelectual, ele é um prato tão cheio quanto a primeira temporada de Westworld. É uma pena que essas perguntas estejam soterradas em meio aos bugs e questões trabalhistas a serem resolvidas.
  34. Talvez o grande problema esteja nessa concepção focada em resultados, de que o jogo é um produto digital, sujeito à versionamentos, melhorias, incrementos, e não como uma peça de arte, fechada em si mesmo, sujeita a interpretações e atribuições de significado por parte dos jogadores.
  35. Aplicativos e serviços digitais conseguem funcionar e perpetuar um mercado nessa lógica, porque conseguem desmembrar seus componentes em benefícios centrais, em forma de assinatura gold, silver, whatever.
  36. Mas e um jogo? Ele consegue fazer isso? É por essas e outras que decisões executivas pesam tanto no desenvolvimento de um jogo quanto a qualidade da direção de arte ou a robustez do código. Se for fatiar um produto em porções entregáveis até obter um MVP pronto para o lançamento, que decisões impactam na narrativa? Que tipo de experiência está sendo oferecida em detrimento do escopo original do projeto? Se os jogadores estão encontrando tantas lacunas na jogabilidade do Cyberpunk 2077, quando, de fato, o “jogo” estará pronto?
  37. Isso não é culpa de ninguém exceto dos executivos e investidores da CDPR. Os desenvolvedores foram forçados ao crunch e às horas extras para seguirem atuando em uma indústria cada vez mais tóxica. De um lado, os gamers e fãs sedentos por sangue, do outro, os engravatados esperando para esconder os esqueletos.
  38. Após quase 100 horas de jogo, fecho o Cyberpunk fugindo da cidade com os Aldecaldos. Essa não foi uma escolha difícil, eu moro em Curitiba, que é uma cidade OK, e mesmo assim tenho vontade de sair correndo às vezes.
  39. É bom que consigamos ver, ainda que pouco, as nossas vidas refletidas na arte que consumimos, porque isso humaniza a arte, ao mesmo tempo que nos eleva a algo além do primata e de suas necessidades básicas de sobrevivência.
  40. Que bom que Cyberunk 2077 sobreviveu, apesar de tudo. Poderia ser um projeto engavetado, um não-jogo nunca lançado, mas acabou sendo isso: um jogo problemático, meio capenga, lançado em meio a um turbilhão, mas que nos deixa fugir.

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Bolívar Escobar

Só vim dar uma olhada, já vou embora (textos sobre séries e filmes contém spoilers).